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“IDEOLOGIA DE GÉNERO”: O DISCURSO QUE PRIVA AS PESSOAS DOS SEUS DIREITOS EM NOME DE UMA SUPOSTA FAMÍLIA E O PAPEL DAS ESCOLAS NO DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO CRÍTICO

Foi na década de 1990, no seio da Igreja Católica, que surgiu a ideia de uma ideologia de género destrutiva que representava uma afronta à integridade da família e aos poderes criadores de Deus. Por todo o mundo esta expressão tem sido utilizada numa série de debates em torno da educação sexual, dos direitos reprodutivos das mulheres, do reconhecimento da identidade das pessoas trans e da defesa dos direitos das pessoas LGBTQIA+. Também em Portugal temos assistido à tentativa de configurar o género como um gesto ideológico ameaçador que precisa de ser afastado das aulas de Cidadania. Pinta-se o género como um inimigo perigoso que afigura uma série de medos sociais de modo a fortalecer uma ordem assente na autoridade patriarcal.

Antes de se fazer qualquer declaração sobre as amarras ideológicas de que a disciplina de Cidadania se tem de libertar, é importante compreendermos o que se faz efetivamente nestas aulas. Os assuntos abordados na disciplina de Cidadania e Desenvolvimento são agrupados em três grupos. O primeiro grupo abrange os temas obrigatórios em todos os ciclos de escolaridade, entre os quais os direitos humanos, a igualdade de género e a interculturalidade. O segundo diz respeito a conteúdos que devem ser trabalhados pelo menos em dois momentos distintos da escolaridade obrigatória, como a sexualidade, os media e a segurança rodoviária. O último versa sobre assuntos de aplicação opcional, dos quais destaco o empreendedorismo, o mundo do trabalho e o voluntariado.

A educação sexual tem sido o conteúdo programático mais controverso. O Referencial de Educação para a Saúde, criado para orientar as escolas na abordagem de temas relacionados com a saúde e o bem-estar dos alunos, propõe, no âmbito dos Afetos e Educação para a Sexualidade, o desenvolvimento de conteúdos como a identidade de género, as relações afetivas, a maternidade e paternidade e os direitos sexuais e reprodutivos. Este documento procura que os alunos desenvolvam capacidades como reconhecer e respeitar diferentes formas de viver a sexualidade, desconstruir estereótipos de género, criar valores de respeito e tolerância, e adotar comportamentos seguros e saudáveis, estabelecendo diretrizes distintas consoante o ciclo de ensino e respeitando as diferentes etapas do desenvolvimento dos estudantes. O movimento contra a ideologia de género tende a ignorar esta adaptação dos conteúdos, de forma a criar um discurso capaz de projetar os receios dos pais nesta disciplina, que tem, na realidade, como foco preparar os alunos para uma reflexão consciente sobre os valores espirituais, estéticos, morais e cívicos. Importa, aqui, reforçar o sentido da palavra reflexão, isto porque estas aulas criam um espaço de diálogo confortável, fornecendo as ferramentas necessárias ao desenvolvimento de discussões informadas e produtivas. Afirmar que a disciplina de Cidadania doutrina ideologicamente as crianças, é mostrar que não se percebe que estas aulas são um ambiente de troca de ideias e reflexão conjunta, e é partir do pressuposto de que a mera discussão destes temas influencia a identidade dos alunos, desvalorizando o debate enquanto prática essencial ao desenvolvimento do pensamento crítico, e vendo este como uma atividade destrutiva, à qual os mais jovens não devem ser expostos.

Todo este discurso em torno da proteção das crianças mostra, ainda, uma clara indiferença perante todas aquelas cujo reconhecimento representa, à luz desta retórica, uma ameaça à integridade da família. Debater estes temas nas escolas permite combater a discriminação contra quem não corresponde às expectativas de género dominantes ou às normas heteronormativas e cisnormativas. Esta argumentação é ainda mais revoltante considerando que o suicídio é uma das principais causas de morte entre os jovens portugueses, sendo mais prevalecente em grupos vulneráveis, como é o caso das pessoas LGBTQIA+, conforme exposto no Contributo Científico OPP – Prevenção do Suicídio: Intervenções e Políticas Públicas Efetivas, disponibilizado pela Ordem dos Psicólogos Portugueses. Este documento alerta também para a possibilidade de as situações de discriminação gerarem sofrimento psicológico, que constitui um fator determinante do suicídio, apelando à implementação de políticas escolares inclusivas.

Falar sobre a sexualidade nas escolas permite, ainda, reduzir o número de gravidezes na adolescência, diminuir a transmissão de doenças sexualmente transmissíveis, e identificar e prevenir de situações de abuso. É fundamental ensinar às crianças o valor do consentimento, dando-lhes a capacidade de reconhecer e expressar os seus direitos, promovendo a segurança e evitando situações de violência.

O movimento contra a ideologia de género apenas reconhece uma noção extremamente restrita de família. A ideologia de género não passa de um espantalho criado para fomentar o pânico, e as consequências deste discurso verdadeiramente destrutivo estão à vista em toda a Europa e nos Estados Unidos da América. Há, por isto, que ter coragem e vontade para endereçar os reais problemas que nos afetam a todos, em vez de nos escondermos atrás de supostas doutrinações ideológicas nas aulas de cidadania.

BIBLIOGRAFIA:

BUTLER, Judith. Quem Tem Medo do Género? Tradução de Nuno Quintas. Lisboa: Orfeu Negro, 2024.

CHEGA. CHEGA propõe fim da obrigatoriedade da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento. Partido CHEGA.

CUNHA, Kássia Millena Pereira da; OLIVEIRA FILHO, Enio Walcácer de. A importância da educação sexual na prevenção do estupro de vulnerável nas escolas, 15 jun. 2024

DIREÇÃO-GERAL DA EDUCAÇÃO. Referencial de Educação para a Saúde. Lisboa: Ministério da Educação, 2017

EXPRESSO. Cidadania: o que se ensina na disciplina da polémica. Expresso, 12 set. 2020

MONTENEGRO, Luís. Discurso de encerramento do 42.º Congresso do Partido Social Democrata. Braga, 20 out. 2024.

ORDEM DOS PSICÓLOGOS PORTUGUESES (2024). Contributo Científico OPP – Prevenção do Suicídio: Intervenções e Políticas Públicas Efectivas. Lisboa.

PORTUGAL. Ministério da Educação. Ensino Básico e Ensino Secundário: Cidadania e Desenvolvimento – Programa e Orientações Curriculares. Lisboa: Ministério da Educação, 2017.

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