Um diálogo sobro o amor e o desamor.
“Copiosa multidão da nau francesa
Corre a ver o espetáculo assombrada;
E, ignorando a ocasião de estranha empresa,
Pasma da turba feminil que nada.
Uma, que às mais precede em gentileza,
Não vinha menos bela do que irada:
Era Moema, que de inveja geme,
E já vizinha à nau se apega ao leme.
[...]
Enfim, tens coração de ver-me aflita,
Flutuar moribunda entre estas ondas;
Nem o passado amor teu peito incita
[...]
Perde o lume dos olhos, pasma e trema,
Pálida a cor, o aspecto moribundo,
Com mão já sem vigor, soltando o leme,
Entre as salsas escumas desce ao fundo.
Mas na onda do mar, que irado freme,
Tornando a aparecer desde o profundo:
"Ah! Diogo cruel!" disse com mágoa,
E, sem mais vista ser, sorveu-se n’água.”[1]
Moema morreu de “amor”. O amor matou. Ela nadou em direção ao barco do seu amado, mas perdeu forças e afogou nas águas da Baía de todos os Santos. A história, ou como nomeia alguns a mitológica-narrativa, sobre a relação triangular entre duas mulheres provenientes da comunidade Tupinambá[2], as irmãs Moema e Catarina, em envolvimento como o homem lusitano Diogo Álvares Cabral, o Caramuru, fora eternizada com o poema do Frei José de Santa Rita Durão em 1781. A história registrada informa que as duas meninas caíram de amores por Diogo, mas ele optou por assumir monogamia e levar apenas Catarina para Europa, lá sucedeu o batismo católico para renomear a Guaibimpará, agora Catarina Alvares Paraguaçu e realizou-se, também, o casamento à moda Europa cristã. Moema, quando viu o barco partir com sua irmã e o amado, optou por tentar alcançar o casal, mas dado as forças das águas fora tragada e devolvida a terra como corpo sem vida tomado pelo “amor”.
Morte, Amor, português e tupinambás. Não é sem razão histórica, e política, que esse enredo fora ficcionalizado como a “origem das famílias brasileiras”[3]. Moema existiu e reexistiu nas mãos de autores franceses, portugueses e no Brasil é claro. Ela fora produzida como bela, irada, morta por amor no mar, vítima do amor não correspondido, a Ofélia brasileira, a Ofélia aborígene. O primeiro triângulo “amoroso” brasileiro fora retratado em ópera, literatura, cinema e até em pintura[4]. Sim, pintaram a mulher que morreu de amor. O seu corpo nu, sem vida, lançado na areia ganhou imagem nas mãos de Victor Meireles em 1866[5]
Não é uma metáfora, é comum nas narrativas “românticas” naturalizar violências, dor e a morte de mulheres … a subserviência, o sacrifício, a renúncia. Atenção, Diogo não se lançou ao mar para salvar Moema. Não se sabe até que ponto a história editada e reeditada se apresenta com acréscimos, distorções e omissões. Para o bem e para o mal convive-se, agora, com as palavras, imagens e interpretações dessa história de “amor” sob as lentes da cultura ocidental. Moema não contou a sua história! Ela vive nas fantasias idealizadas por outros.
Silvane Silva não poderia ter dito melhor: “nossa cultura valoriza demais o amor como fantasia ou mito”.[6] Uma comunidade nascida e educada dentro de uma cultura patriarcal desenvolve as suas interações, seja no ambiente doméstico ou nas relações intimas, considerando a ideia do amor romântico neste mesmo contexto sociocultural que, reitera-se, é patriarcal.[7] Ora, com todos os vícios que Patriarcado heteronormativo racista produziu para a comunidade, não seria de suma importância questionar se essa comunidade dispõem dos instrumentos psíquicos e espirituais para nomear, identificar e concretizar Amor ? Em outras palavras, vive-se em uma sociedade habilitada a “fazer” Amor e, igualmente, apta ao reconhecimento do desamor?
A incompreensão conduz ao dicionário: “amor, sentimento que predispõem a desejar o bem de alguém, afeto, desejo e dedicação”[8]. Desejar o bem! Mas o que significam práticas de desejar o bem? Ao produzir estudo[9] sobre a violência no namoro a UMAR (União de Mulheres Alternativa e Resposta) conversou com jovens dos 11 aos 21 anos, ou seja, o diálogo-pesquisa fora desenvolvido em Portugal, no ano de 2024, junto às “crianças “do novo milênio, e infelizmente identificaram a presença expressiva da legitimação/naturalização de comportamentos de controle, perseguição e violência física dentro das relações intimas entre os jovens. Mais de 3.000 jovens acreditam que amor compreende o controle sobre sua companheira/o. Seria “amoroso “para 1085 meninos proibir a parceira de vestir determinada peça de roupa. Onde, como e quando estes jovens foram “educados” para o Amor?
No extremo o feminicídio na intimidade. Sofia Neves e Ariana Correia verificaram, em Portugal, o tema a partir da análise das narrativas mediáticas publicadas no jornal Correio da Manhã e no Jornal Público, entre 2000 e 2017. Evidente como motivação para o crime o ciúme e não aceitação do fim do relacionamento. As autoras chamam a atenção para naturalização de comportamentos agressivos/desproporcionais:
“No que ao crime genderizado diz respeito, a sua mediatização é regularmente pautada pela reprodução, naturalização e legitimação de estereótipos de género, sendo que estes valores e crenças, quando mediatizados de forma natural e acrítica, ecoam na forma como o público compreende e prioriza ou desvaloriza e legitima estes fenómenos (Baldry & Pagliaro, 2014; Belknap, 2007; Fairbain & Dawson, 2013; Simões, 2008). Décadas depois das lutas feministas reclamarem a politização do espaço privado, evidenciando as assimetrias estruturais e as desigualdades simbólicas como alicerce da violência na intimidade, a mediatização sobre estes crimes mantém-se conservadora, acompanhando a resistência da sociedade em perceber e aceitar a violência na intimidade e, por consequência, o femicídio na intimidade, como fenómenos eminentemente socioculturais (Simões, 2014).
[..]
A naturalização da violência, por parte das comunidades a que vítima e perpetrador pertenciam, foi por demais evidente na análise das reações sociais relativamente ao casal. Enquanto a alguns casais não lhes era associado histórico de violência na intimidade, aludindo-se à normalidade do casal, adensando a inexplicabilidade do crime — Parecia que não havia ninguém naquela casa [P2002_05_05], noutros casos, todos/as têm conhecimento do repertório abusivo, minimizam-no, associando-o à esfera privada — Problemas existem em todas as casas [CM2000_08_17]. Ainda a permissividade e complacência da comunidade, faz com que o femicídio seja uma tragédia anunciada [CM2013_02_01]. Aqui, a comunidade percebe a gravidade da situação, tan-to que antevê o seu desfecho, porém mantém-se como observadora” [10]
Ganham forças as palavras de Bell Hooks: “não há muitos debates públicos a respeito do Amor em nossa cultura”[11]. Seria o amor um sentimento-ação inato/natural que não exige construção coletiva, seria, então, desnecessário o debate público sobre o desamor? Amor é uma responsabilidade familiar ou comunitária? Ou melhor, uma atribuição conjunta ... família nuclear, família estendida e sociedade? A quem cabia “conversar com Moema” e pontuar que nadar em águas profundas, ao risco de afogamento, na tentativa de alcançar o amado, não é romântico?
Diante dos mitos, romances e vida real, não é sem razão que Bell Hooks menciona:
“há tutorias para todas as dimensões da sexualidade, até para a masturbação. No entanto, não existem escolas para o amor. Todo mundo supõe que sabemos, instintivamente, como amar. Apesar de esmagadoras evidências contrárias, ainda aceitamos que a família é a escola primordial para o amor. [...] Amor, devemos ousar reconhecer quão pouco sabemos sobre ele na teoria e na prática. Devemos encarar a confusão e a decepção em relação ao fato de que muito do que nos foi ensinado a respeito da natureza do amor não faz sentido quando aplicado a vida quotidiana”[12]
E pior, na ausência do debate público, como prática cotidiana, bem como a falta de políticas públicas, ou seja, ao insistir que desamor não é uma preocupação coletiva, as pessoas, individualmente, recorrem aos autores que
“sugerem que o amor deveria significar algo diferente para homens e para mulheres - que os sexos devem respeitar e se adaptar a nossa e na habilidade de comunicação, uma vez que não partilhamos a mesma linguagem. Esse tipo de literatura é popular porque não exige mudanças nas formas estabeleci vidas de pensar papéis de gênero, cultura ou amor. […] muitos livros populares de autoajuda normalizam o machismo. Em vez de associar modos de ser, geralmente considerados inatos, a comportamentos aprendidos que ajudam a sustentar a dominação masculina, agem como se essas diferenças não estivessem carregadas de valores ou não fossem políticas, e sim intrínsecas e místicas”[13]
A frase seguinte parece boba, mas vale dizer: Amor e Amar deveriam estar na pauta das conversas do dia a dia. O tema do amor, a refletir o jeito-definição do que é amar, merece está no diálogo entre crianças, jovens e adultos, nos espaços de integração comunitária, nas escolas, nas famílias, no trabalho e até nas casas de decisão política. Justifica-se essa afirmação porque a mulher agredida, assassinada, controlada e assediada psicologicamente, é filha, é esposa, é neta, é irmã, é mãe, é cunhada, é tia, é avó, é amiga, mas, para além de todo contexto familiar e dos vínculos de amizades, essa mulher é cidadã, é um ser humano pertencente a comunidade. Nesse contexto, a responsabilidade, para além da necessária e adequada punição exemplar do agressor, cabe focar também na prevenção/intimidação a não violência face as mentes-corpos destas mulheres em uma “força-tarefa” coletiva.
Os modos de socialização, ainda vigentes, empoderou comportamentos machistas de desamor. Não se trata de excluir a punição individual do agressor, pelo contrário, convivesse com homens que se sentem confortáveis ao reprimir/proibir a companheira de vestir determinada roupa, creem que amor permite exigir um padrão comportamental para a esposa. Homens que batem, gritam e definem-se como autoridade superior no núcleo familiar. Enfim, “o pensamento patriarcal ainda é a norma”[14]. Cabe refletir:
“As emoções (amor, ódio, raiva, medo, a aversão e vergonha) não são apenas estados psicológicos, mas também práticas culturais que se estruturam socialmente através de circuitos afetivos. Desse modo, as emoções e os sentimentos não podem ser compreendidos apenas como problemas de ordem psicológica e individual, já que constituem problemas de ordem cultural, política e social. A autora (AHMED, 2004) demonstra como as emoções não residem nem nos sujeitos nem nos objetivos, mas são construídas nas interações entre os corpos, nas relações entre as pessoas. Tais encontros e relações entre as pessoas são mediados por sentimentos, moldados por histórias e conhecimentos prévios. Existe uma espécie de “aprendizagem emocional” que adotamos desde criança [...] O amor não é algo natural, a-histórico ou uma propriedade dos corpos femininos. [...] Nesse modelo de amor romântico, as mulheres são colonizadas em um processo de educação dos sentidos que implica em uma renúncia pessoal, no esquecimento de si mesma, em uma entrega total que potencializa comportamentos de dependência e assujeitamento aos homens. É por meio de diferentes agentes educativos (escola, livros didáticos, ciência, mídia, cinema, literatura, família, igreja, etc.) que nos chegam uma série de imagens e narrativas sobre as relações amorosas e de casais, impondo tais valores hierárquicos e patriarcais.”[15]
Assim, as relações amorosas entre homens e mulheres exigem contextualização histórica e sociocultural. É necessário desnaturalizar comportamentos de desamor e assumir compromissos coletivos de prevenção as violências em face das mulheres, bem como cabe acreditar no Amor como um autêntico pilar comunitário a possibilitar transformações nas relações humanas.
Bibliografia
CORREIA, Ariana Pinto, & NEVES, Sofia. (2021). Narrativas mediáticas sobre o femicídio na intimidade em Portugal - Implicações e desafios. Media & Jornalismo, 21(39), 229-245. https://doi.org/10.14195/2183-5462_39_12
HOOKS, Bell. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. Tradução Stephanie Borges. São Paulo: Elefante. 2021.
OLIVEIRA, Susane Rodrigues. A violência do dispositivo amoroso e assujeitamento das mulheres nos livros didáticos de história. Labrys (Edição em Português. Online), v. 30, p. 1-10, 2017
RIBEIRO, Maria Aparecida. Moema, um episódio romântico no Barroco brasileiro e suas projeções até os nossos dias". Veredas. Revista da Associação Internacional dos Lusitanistas 19 (2013): 71-92
[1] Poema O Afogamento de Moema - do sexto canto do Caramuru. Autor Frei José de Santa Rita Durão em 1781.
[2] “ Os tupinambás são um povo originário brasileiro, parte da família linguística Tupi-Guarani, que habitava extensas áreas do litoral do Brasil, destacando-se nas regiões Nordeste, Sudeste e Sul.” Disponível em : https://mundoeducacao.uol.com.br/historiadobrasil/tupinambas.htm . Acesso 11 de fevereiro de 2025.
[3] É necessário atenção ao fato que já havia famílias nas terras “descobertas” pelos portugueses
[4] RIBEIRO, Maria Aparecida. Moema, um episódio romântico no Barroco brasileiro e suas projeções até os nossos dias". Veredas. Revista da Associação Internacional dos Lusitanistas 19 (2013): 71-92
[5] Victor Meirelles - Moema, 1866
“Moema apaixonada por Diogo, deseja continuar ao seu lado e acaba morrendo afogada ao tentar alcançar o seu navio em alto mar. Sua morte por amor a um homem branco, conquistador europeu, ganha beleza, erotismo e naturalidade nessa imagem. A entrega de sua vida por amor e desejo pelo homem branco marca não só as mulheres, mas especialmente as indígenas como corpos dóceis e sacrificáveis, por amor e devoção aos homens brancos, e assim elas são capazes de renunciar à sua própria cultura […] revela ainda que as mulheres, mesmo irmãs, viram as costas uma para as outras, elas abandonam suas irmãs, mesmo em um momento de sofrimento e morte, tudo isso para seguir o marido” OLIVEIRA, Susane Rodrigues. A violência do dispositivo amoroso e assujeitamento das mulheres nos livros didáticos de história. Labrys (Edição em Português. Online), v. 30, p. 1-10, 2017
[6] SILVA, Silvane. A prática do amor como potência para a construção tinha uma nova sociedade. p. 19. Em HOOKS, Bell. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. Tradução Stephanie Borges. São Paulo: Elefante. 2021.
[7] Ibidem, p 19.
[8] Vocábulo Amor. Disponível em : https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/amor. Acesso em 11 de fevereiro de 2025.
[9] VIOLÊNCIA NO NAMORO EM PORTUGAL : VITIMAÇÃO E CONCEÇÕES JUVENIS.
Disponivel em https://www.cig.gov.pt/wp-content/uploads/2024/02/INFO_ARTHEMIS_UMAR_2024_v002_compressed.pdf. Acesso 11 de fevereiro de 2025.
[10] Correia, A., & Neves, S. . (2021). Narrativas mediáticas sobre o femicídio na intimidade em Portugal - Implicações e desafios. Media & Jornalismo, 21(39), 229-245. https://doi.org/10.14195/2183-5462_39_12
[11] HOOKS, Bell. Op cite. P 31.
[12] HOOKS, Bell. Op cite. P 42-43
[13] HOOKS, Bell. Op cite. P 53 e 186.
[14] HOOKS, Bell. Op cite. P 133
[15] OLIVEIRA, Susane Rodrigues. Op Cite.
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